segunda-feira, 16 de junho de 2008

Os olhos



Notável criatura são os olhos!
Admirável instrumento da natureza; prodigioso artifício da Providência!
Eles são a primeira origem da culpa; eles a primeira fonte da Graça.
São os olhos duas víboras, metidas em duas covas, e que a tentação pôs o veneno,
e a contrição a triaga.
São duas setas com que o Demónio se arma para nos ferir e perder;
e são dois escudos com que Deus depois de feridos nos repara para nos salvar.
Todos os sentidos do homem têm um só ofício; só os olhos têm dois.
O Ouvido ouve, o Gosto gosta, o Olfacto cheira, o Tacto apalpa,
só os olhos têm dois ofícios: Ver e Chorar.
Estes serão os dois pólos do nosso discurso.
Ninguém haverá (se tem entendimento) que não deseje saber por que ajuntou a Natureza no mesmo instrumento as lágrimas e a vista;
e por que uniu a mesma potência o ofício de chorar, e o de ver?
O ver é a acção mais alegre; o chorar a mais triste.
Sem ver, como dizia Tobias, não há gosto, porque o sabor de todos os gostos é o ver; pelo contrário, o chorar é o estilado da dor, o sangue da alma,
a tinta do coração, o fel da vida, o líquido do sentimento.
Por que ajuntou logo a natureza nos mesmos olhos dois efeitos tão contrários,
ver e chorar?
A razão e a experiência é esta.
Ajuntou a Natureza a vista e as lágrimas,
porque as lágrimas são consequência da vista;
ajuntou a Providência o chorar com o ver, porque o ver é a causa do chorar.
Sabeis porque choram os olhos?
Porque vêem.



Padre António Vieira, in "Sermões"

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